KUSUHARA: JAPãO ENFRENTA 'EPIDEMIA' DE CLIENTES DESRESPEITOSOS

O Japão é conhecido por ter uma das jornadas de trabalho mais longas do mundo a ponto de resultar no fenômeno karoshi, a morte por excesso de trabalho. Desde 1987, o governo japonês instituiu a Lei do Trabalho que recomenda uma jornada de 40 horas semanais, o mesmo que alguns países da Europa, por exemplo. No entanto, o que tornam as políticas de trabalho brutais no país são as horas extras.

Os funcionários japoneses são obrigados por políticas internas das empresas a darem conta dos seus afazeres, ajudar os colegas ou apenas permanecer em sua mesa e não sair do escritório até que um superior o faça. Dessa forma, também cunhou-se o termo "assalariado" para se referir a pessoas ambiciosas que almejam uma carreira de sucesso e um salário elevado no futuro. Afinal, sacrificar-se pelo trabalho é visto como um sinal de dedicação e devoção, não uma má gestão do tempo, exploração do ambiente hierárquico corporativo e do sistema.

Em 2018, entrou em vigor a Lei de Reforma do Estilo de Trabalho, após o escândalo do caso do jovem Matsuri Takahashi, que tirou a própria vida após trabalhar 100 horas extras em um mês, como identificou o Labour Standard’s Bureau de Tóquio. A situação não fez diminuir o número de mortes anuais relacionadas ao excesso de trabalho no país. Assim como o Acordo 36 da Lei de Normas Trabalhistas Japonesas, que limita a 15 horas extras semanais e 45 horas mensais, podendo resultar em prisão de 6 meses ou multa no equivalente a US$ 1 milhão, também não impediu as empresas explorassem seus empregados.

Como se todo o sistema disfuncional ao redor do trabalho não fossem o suficiente, os trabalhadores japoneses ainda precisam lidar com o kasuhara, uma epidemia de clientes desrespeitosos.

Desconstruindo uma verdade

O povo japonês é conhecido por sua gentileza cultural, atribuída a fatores históricos, filosóficos e sociais. O budismo e xintoísmo influenciaram muito esse aspecto da cultura social japonesa ao promover valores como compaixão, respeito pelo próximo e harmonia. A ênfase na hierarquia e no respeito mútuo, conhecido como keigo, é ensinado desde muito cedo para que as pessoas saibam como tratar os outros com respeito e cortesia.

O ensinamento é reforçado em casa, na escola e em várias instituições que constituem os pilares da sociedade, portanto, muitas pessoas recebem com choque a informação de que o Japão possui um longo histórico de desrespeito contra o funcionário

Um ditado popular japonês diz: kyakusama wa kamisama, que significa “o cliente é Deus”. No entanto, o abuso desse poder começou a fazer as autoridades e empresas do setor de serviços reconhecerem a necessidade em proteger os funcionários de comportamentos autoritários do público.

Uma pesquisa realizada pelo UA Zensen, um dos maiores sindicatos industriais do Japão, com 1,8 milhão de participantes, revelou que, dos mais de 30 mil membros que trabalham no setor de serviços em 2024, 46,8% alegaram sofrerem assédio moral de clientes nos últimos dois anos em seu ambiente de trabalho. A maior parcela dos entrevistados, 39,8%, citou linguagem abusiva como meio de ofensa, enquanto 14,7% reclamaram de intimidação, e 13,8% disseram sofrerem de queixas repetitivas, enquadradas como perseguição pessoal.

A emissora japonesa de rádio NHK foi às ruas para perguntar como anda a conduta dos clientes aos trabalhadores do setor de serviços. Em entrevista, uma caixa de supermercado disse que foi xingada violentamente por um cliente que reclamou que não conseguia trocar dinheiro, embora a loja estivesse sinalizada e equipada com máquinas de troca automatizadas. Uma vendedora de loja de roupas relatou que um cliente exigiu que um item, esgotado, fosse enviado para sua casa. Ela informou que o tratamento rude faz com que ela perca a motivação para interagir com os outros. “Tenho vontade de sair do setor de serviços por isso”, acrescentou ela.

Mudando o status quo

A fala da entrevistada vai de encontro com a pesquisa realizada pela Confederação Sindical Japonesa, ou Rengo, que descobriu que três em cada quatro trabalhadores assediados moralmente por clientes tiveram suas vidas mudadas. Eles citaram depressão no trabalho e problemas relacionados a saúde mental como consequência.

A própria estrutura de trabalho hierárquica rigidamente apoiada na tradição de tratar os clientes como realeza, não dispõe de recursos tampouco permite as queixas dos empregados que, temendo represálias, perda de reputação ou demissão, acabam recorrendo à antiga cultura do silêncio. Isso contribui para um alto nível de estresse, levando ao absenteísmo, problemas de ordem emocional e, em última análise, cria-se uma força de trabalho que se sente desvalorizada e sobrecarregada.

Não é à toa que essas práticas começaram a entrar em choque com as expectativas modernas de cultura do local de trabalho, à medida que a nova geração de japoneses mais educados sobre seus direitos como funcionários do que sobre seu dever no local de trabalho, forçam o status quo da estrutura japonesa.

As medidas

Em maio desse ano, o governo metropolitano de Tóquio, sob o comando da governadora Koike Yuriko, apresentou uma portaria para proteger os funcionários de abusos e agressões de clientes. A política discutiu propostas desenvolvidas por um grupo de trabalho dentro do governo desde 2023, planejando adotar a portaria após a aprovação da Assembleia Metropolitana até o fim desse ano.

O grupo propôs que a portaria defina assédio de cliente ao funcionário como violência, ameaças e outros atos ilícitos, bem como injustiças que possam prejudicar o ambiente de trabalho de algum indivíduo.

A questão sobre não incluir penalidade para a prática de kasuhara na portaria, ainda é algo a ser discutido. De um lado, temos aqueles que acreditam que, dessa forma, a portaria serve como uma medida dissuasora em vez de punitiva. Do outro, há quem diga que a definição de penalidades para ações específicas poderia fazer com que o público sentisse que ações não sujeitas a punição serão permitidas.

Do ponto de vista social, a portaria será essencial para definir uma imagem clara do que constitui assédio moral ao trabalhador, uma vez que isso difere de empresa para empresa, com alguns casos sendo considerados como visivelmente graves, enquanto outros apenas como insignificantes ou "cinzentos".

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