MéDICOS DO SERVIçO PúBLICO DE CUIABá NãO RECEBEM PAGAMENTO Há MAIS DE CEM DIAS

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Médicos que atendem no Hospital Municipal de Cuiabá (HMC) e em todas as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) da capital mato-grossense estão há mais de cem dias sem receber por plantões realizados. O hospital e as unidades somam 250 mil atendimentos por mês.

As empresas Cooperativa de Atendimento Pré-hospitalar (Coaph) e Family Medicina e Saúde, contratadas pela Prefeitura de Cuiabá e pela Empresa Cuiabana de Saúde Pública (ECSP), respectivamente, são responsáveis pelos pagamentos dos médicos.

Coaph e Family dizem aos profissionais que o atraso ocorre porque a prefeitura e a ECSP não estão repassando os valores acordados em contrato. Com a falta de pagamento, médicos pararam de atender ou diminuíram a frequência dos plantões.

A situação agravou a crise do município, que deve R$ 500 milhões na área da saúde, segundo o Ministério Público Estadual (MPE). A falta de mão de obra contribuiu para ampliar as filas de pacientes. As unidades de saúde e o hospital estão superlotados, de acordo com um relatório da Secretaria Estadual de Saúde de Mato Grosso (SES-MT), ao qual a Folha teve acesso com exclusividade.

A Coaph, com inscrição cadastral em Fortaleza (CE), é contratada pela Prefeitura de Cuiabá para prestar serviços de atendimento em todas as UPAs e na policlínica da capital mato-grossense.

Já a Family é a principal prestadora de serviços de atendimento no HMC, hospital que é centro de referência para todo o estado. A empresa é contratada pela ECSP, vinculada à Secretaria Municipal de Saúde.

O dono da Family, Milton Correa da Costa Neto, foi secretário-adjunto da Secretaria Municipal de Saúde de Cuiabá e investigado pela Polícia Federal, em 2023, por participação em um esquema que desviou R$ 3 milhões dos cofres da saúde do município, sob a gestão do atual prefeito Emanuel Pinheiro (MDB), que já foi afastado duas vezes do cargo --ambas por suposto envolvimento em esquemas de desvio na saúde.

Essas empresas terceirizadas firmam contratos societários com médicos, o que elimina o vínculo trabalhista.

Em áudios obtidos pela reportagem, um porta-voz da cooperativa diz, ao ser questionado por uma médica sobre o atraso, que não adianta reclamar com ele. O representante da Coaph culpa a secretaria municipal.

Uma das plantonistas da cooperativa, que não quis se identificar, afirma ter parado de dar plantão porque estava "pagando para trabalhar". Ela atende na UPA Morada do Ouro e não recebe desde fevereiro.

Apenas os profissionais que trabalham naquela unidade receberam o pagamento referente ao mês de janeiro, depositado em abril. Os outros não recebem desde o ano passado.

Com a crise e a escassez de médicos, a cooperativa criou exigências. Agora, os profissionais devem cumprir plantões mínimos de 48 horas semanais e atender, pelo menos, 38 pacientes por plantão.

Em caso de descumprimento, a empresa ameaça com descontos no pagamento e desligamento.

Mensagem de WhatsApp enviada por porta-voz da Coaph a uma médica plantonista da cooperativa. Reprodução Print mostra mensagem na íntegra enviada por porta-voz da Coaph a uma médica plantonista da cooperativa. **** Ao mesmo tempo, servidores públicos da área da saúde de Cuiabá ameaçam entrar em greve.

A gestão do prefeito Emanuel Pinheiro (MDB) cortou, em março, até 40% no adicional, direito constitucional dos profissionais da saúde, previsto também em lei municipal.

O Sindicato dos Médicos de Mato Grosso (Sindimed) acionou a justiça para assegurar o pagamento do adicional. A prefeitura disse que o valor seria depositado o mais breve possível.

A prefeitura cumpriu o prometido e pagou o adicional, um dia após receber o Financiamento da Média e Alta Complexidade (MAC), recurso pago pelo Governo Federal para custeio de atendimentos ambulatoriais.

"O valor é carimbado, deve ser utilizado somente para ações e serviços de saúde de média e alta complexidade. Caso contrário, pode ser enquadrado como desvio de finalidade e pedalada fiscal", afirmou Hugo Lima, procurador do estado de Mato Grosso.

O promotor de Justiça, Milton Mattos da Silveira Neto, considerou que o contexto da saúde na capital é de "insegurança e instabilidade financeira".

"Queremos trabalhar com soluções de médio e longo prazo para não ficarmos só apagando incêndio com medidas paliativas", afirmou.

Somente na pasta da saúde, a dívida do município chega a R$ 500 milhões, segundo estimativas do MPE.

Esta não é a primeira vez que a saúde de Cuiabá entra em crise.

Em 2023, o MPE chegou a solicitar uma intervenção estadual na saúde por uma série de irregularidades, entre elas a falta de medicamentos e a má gestão administrativa da prefeitura.

A saúde retornou para a gestão do prefeito Emanuel Pinheiro em 31 de dezembro do ano passado, quando foi firmado um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) entre município, MPE e TCE.

A Folha teve acesso com exclusividade ao relatório técnico elaborado pela Secretaria de Saúde de Mato Grosso (SES-MT), que indicou que a saúde da capital está "prestes ao colapso", novamente.

Entre as razões indicadas, está a superlotação das unidades por falta de profissionais.

Na última terça (23), o MPE notificou o prefeito. O órgão exigiu o cumprimento do TAC e o repasse dos valores estipulados na Lei Orçamentária Anual de 2024 para a saúde.

OUTRO LADO

Procuradas, Coaph e Family não responderam até a publicação desta reportagem. A Prefeitura de Cuiabá declarou que uma nova nota de serviço da Family Medicina será quitada até o fim deste mês. Quanto à Coaph, afirmou que a última nota foi paga dentro do prazo contratual neste mês. A prefeitura destacou que os pagamentos estão seguindo o trâmite contratual normal.

Segundo a prefeitura, a administração municipal assumiu a saúde pública há três meses, após um período de intervenção do governo de Mato Grosso, de março a dezembro de 2023, quando foi administrada por um gabinete de intervenção, "criado com o pretenso objetivo de solucionar problemas na saúde, mas deixou de cumprir 111 metas da própria decisão judicial que o criou".

Ao retomar a administração, a prefeitura declara que enfrentou problemas como obras mal feitas e falta de pessoal. A prefeitura mencionou um déficit de R$ 200 milhões projetado para 2024, causado em parte pela retirada de recursos pelo governo estadual por "motivações políticas".

Diz ainda que "o Estado deixará de investir cerca de R$ 96 milhões, como fazia no período da intervenção" e que "o Gabinete de Intervenção do Estado elevou o passivo da Secretaria em R$ 130 milhões".

O Governo do Estado de Mato Grosso negou as alegações da prefeitura sobre a intervenção na saúde de Cuiabá, destacando que cumpriu as determinações judiciais e melhorou diversos aspectos, como aumento no atendimento e regularização na aquisição de medicamentos.

Esclarece ainda que a denúncia de déficit de R$ 200 milhões é "mentirosa e já foi julgada improcedente pelo TCE-MT" e destaca que o governo estadual "adiantou o repasse de R$ 46,3 milhões no ano passado, em decorrência do caos financeiro que se encontrava a Saúde de Cuiabá".

O governo estadual nega a acusação de não pagamento de passivos, afirmando que os pagamentos foram realizados. Quanto à inexistência de contrapartida do estado, o governo de Mato Grosso contradiz, alegando que repassou R$ 846,8 milhões de 2019 a 2023, por Cuiabá ser um centro de referência regional e gestor pleno do SUS.

Por fim, esclarece que uma possível intervenção na Saúde de Cuiabá "deve ser determinada pela Justiça, pois o Governo do Estado não tem autonomia sobre a gestão do município".

O Conselho Regional de Medicina (CRM-MT) informou que "é inadmissível que qualquer profissional fique cem dias ou mais sem receber pelos serviços prestados" e que a responsabilidade é da Prefeitura de Cuiabá, que "rotineiramente tem atrasado seus pagamentos".

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