COCHILAR 30 MINUTOS, FAZER UMA TAREFA POR VEZ, CAMINHAR: COMO DESCANSAR E SER PRODUTIVO NO TRABALHO

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Um cochilo de 30 minutos no meio do dia, uma caminhada, uma meditação ou até mesmo o simples ato de realizar uma tarefa por vez podem mudar sua vida. Essas são algumas das propostas da jornalista Michelle Prazeres, fundadora da plataforma Desacelera SP, criada em 2015.

Em entrevista ao Estadão, Prazeres compartilha como podemos repensar atividades comuns do dia a dia e a maneira como trabalhamos. Ela também defende a inserção de pausas no cotidiano. “É preciso restabelecer os pactos relacionados aos horários de trabalho e ao descanso”, diz Prazeres.

A fundadora da Desacelera SP, movimento que convoca pessoas fartas da rotina ao descanso e empresas dispostas a incorporar uma cultura slow, acrescenta que é possível ser produtivo e praticar o descanso. No entanto, o estilo de vida exige um esforço coletivo para que seja algo universal e para toda a população.

“Tudo que não é considerado útil neste mundo é descanso, e é por isso que é tão subversivo descansar em um mundo que opera 24 horas por dia, sete dias por semana e não desliga nunca”, comenta.

Confira trechos da entrevista:

O que significa ser uma pessoa produtiva?

Na Bahia, as pessoas têm uma resposta ótima para perguntas assim que é: quem souber morre.

Hoje ser produtivo tem mais a ver com entregar metas e resultados, mas isso vai depender de cada contexto. Ser produtivo também tem a ver com a narrativa de ser útil, e o que é ser útil nesse mundo em que tudo está voltado para o trabalho e para o consumo?

Por exemplo, passo boa parte das horas da minha semana cuidando dos meus filhos. Esse foi o tema do Enem, esse trabalho não é considerado produtivo. Portanto, não é digno de remuneração nem de reconhecimento.

E aí começamos a ver alguns questionamentos de pessoas falando de produtividade sustentável ou de produtivismo versus produtividade ou de produtividade tóxica.

Então, estamos vendo discussões para pensar em cultura de cuidado, bem-estar e saúde mental das pessoas em meio à produtividade.

Na prática, posso garantir ali o que interessa para aquela corporação ou para aquela empresa, mas que isso não seja infinito, porque o infinito é que tende a ser desumano e exige do ser humano um desempenho de máquina que nunca vamos ter.

É possível ser uma pessoa produtiva e ainda priorizar o descanso?

Acho que sim, mas precisamos rever o que entendemos por produtividade. É preciso restabelecer os pactos relacionados aos horários de trabalho e ao descanso. Isso tem a ver com a garantia de direitos trabalhistas e o resgaste das relações formais de trabalho ou até mesmo das relações informais.

Teríamos que conseguir uma vida digna para as pessoas reorganizarem o sistema produtivo para não ter tanto desequilíbrio.

Conheço pessoas que são ultraprodutivas e que conseguem ter um modo de viver produtivo no sentido de que são funcionais, entregam seus trabalhos, organizam seu tempo com alguma flexibilidade e conseguem ser o que se propuseram. Mas é uma parte irrisória da população que tem o privilégio de escolher vidas mais flexíveis de trabalho.

O Brasil é um dos países com maior jornada de trabalho, segundo a OCDE. Como podemos encorajar as pessoas que passam a maior parte do dia no trabalho e não conseguem ter pausas?

Esse é o principal desafio. Há umas três semanas fizemos ‘O dia sem pressa’, festival anual em parceria com o Sesc, em que conseguimos democratizar o acesso ao cuidado porque é um evento aberto e gratuito para todo mundo.

Nesta edição, algumas pessoas vieram me abraçar e falar assim: ‘Não sabia que o meu corpo precisava disso, recebi uma massagem nos pés, estou arrepiada. Fiz aquela meditação e descobri que com 10 minutos no meu dia posso fazer uma aula.’

Ela falou que não sabia que o corpo dela podia descansar, então sinto que são dois caminhos paralelos e que para essas pessoas o que temos que falar é: quando você acha no seu dia, na sua semana ou no seu mês que daria para cuidar de você?

Acho que falta essa escuta. Temos que sistematicamente dar conta de liberar o tempo dessas pessoas para elas poderem fazer isso. E como liberamos tempo? Financiando esse tempo ou com empregos mais dignos e mais justos ou com jornadas de trabalho menores.

Não tenho uma resposta pronta. Mas o que tenho testado como hipótese é de que por um tempo temos que financiar o descanso dessas pessoas porque senão elas não vão trocar uma hora de trabalho por uma hora de descanso.

Não adianta ficar escrevendo descanso para essas pessoas porque vai ser violento. Uma pessoa que está em modo de sobrevivência, se você falar para descansar ela vai te mandar à m****.

Nos últimos anos, o que mudou na forma como as pessoas trabalham e valorizam o descanso?

O principal sintoma pós-pandemia é a normalização da mediação tecnológica. Seria supernormal estar aqui fazendo uma outra tarefa enquanto falo com você em uma reunião com a câmera fechada. É uma atrocidade com a nossa condição de atenção.

Tem muitas questões de saúde mental que não olhamos nessa retomada. Inclusive, na volta da convivência. Nos ambientes de trabalho, é óbvio que sofremos reverberações disso. Achamos que íamos voltar com menos sangue nos olhos. Estamos correndo muito mais do que antes.

Isso terminou gerando um encapsulamento do tempo. Um dos piores mitos é: ‘organize, que você vai conseguir dar conta de tudo’. É uma grande mentira.

Você não vai dar conta, hoje em dia só cabe porque somos multitarefas, porque se você for colocar no tempo todas as tarefas que realiza em uma semana vai ver que a sua semana de trabalho deveria ter 90 horas, e só damos conta de fazer essas tarefas porque as fazemos ao mesmo tempo, com sobreposição temporal.

Normatizamos em regras algumas coisas que potencializam a desumanização do mundo do trabalho. Então, você está fazendo x tarefas em 20 horas no tempo em que você precisaria de 40 horas. Você está comprimindo o seu tempo e aumentando a sua produtividade por essa lógica, só que você não consegue. Sinto que cada vez menos temos condição de olhar para isso porque cada vez mais entramos nesse modo de sobrevivência, nem reconhecemos os sintomas.

Pode listar algumas das práticas essenciais de descanso que as pessoas podem adotar no cotidiano?

É preciso lembrar que, quando prescrevemos essas práticas, estamos entendendo que os indivíduos podem escolher. E aí, estamos falando para uma parte das pessoas. Sempre faço essa ressalva.

Dito isso, acho que há uma coisa que é perceber para o que que você está dedicando o tempo. Tente olhar para a sua semana, o seu mês e veja se está conseguindo equilibrar trabalho, vida pessoal, autoconhecimento, estudo, esporte. Enfim, perceber as escolhas de tempo de um jeito mais consciente é importante.

Há uma coisa que dá para todo mundo fazer que é conversar sobre o tempo. Um exemplo clássico: converse com o seu chefe sobre os prazos.

Se os prazos são sempre para ontem, há alguma coisa errada estabelecida culturalmente e que pode ser conversada. Isso aqui é para ontem mesmo ou para quando é de fato?

Pode ser: olha, não vou ficar aqui até 21 horas, mas amanhã consigo chegar mais cedo.

Conversar sobre o tempo nos ajuda a desacelerar e a descansar. Fazer uma coisa de cada vez também ajuda a mente a descansar. Quando você consegue ter intervalos e ficar offline também traz descanso.

Também há a higiene do sono. É importante ter um tempo específico de sono. Se for possível, ter contato com a natureza para trazer a sensação de descanso.

Por exemplo, tenho a minha florestinha particular aqui na minha varanda, quando estou muito acelerada vou ali e replanto uma plantinha, limpo uma outra, vou fazendo desse jeito.

Há outras coisas bem básicas: fazer exercício, tomar sol, se der para ir a pé a algum lugar, vá. Tudo isso vai ajudando a pensar que você tem direito a um tempo não produtivo. Eu ousaria dizer que todo tempo não produtivo é um tempo de descanso neste mundo.

Tudo que não é considerado útil neste mundo é descanso, e é por isso que é tão subversivo descansar em um mundo que opera 24 horas por dia, sete dias por semana e não desliga nunca.

É possível desacelerar em São Paulo?

Desacelerar na grande cidade tem a ver com adotar algumas atitudes. De novo, acho que é possível desacelerar em São Paulo individualmente, mas o mundo precisa desacelerar sistemicamente. Se não cuidarmos desse lugar mais coletivo, não vai ser possível desacelerar individualmente daqui a pouco.

Há um mito sobre desacelerar, que é essa história de ser lento. Na verdade, o desacelerar é sair desse modo automático e anestésico.

Sair do automático e se perguntar: esse prazo é mesmo amanhã? Preciso responder a essa mensagem agora? Isso já é desacelerar em São Paulo.

Fazer isso individualmente requer um esforço que nem todo mundo consegue. Não podemos dizer que é individual, porque senão vamos frustrar as pessoas.

Precisamos brigar cada vez mais para que as cidades sejam cidades de convívio, que tenham espaços ao ar livre. Não ser apenas cidade-fluxo ou feita para carros ou cidades para que as pessoas se desloquem para trabalhar e voltem para suas casas e continuem trabalhando.

Se você tiver condição de andar de bicicleta ou a pé, faça isso. Conviva com as pessoas que são importantes para você, esteja presente e com atenção plena quando estiver tentando ser monotarefa. Dialogue sobre prazos.

Acho que todas são atitudes individuais que fazem ser possível uma vida mais desacelerada em uma cidade como São Paulo. Ainda que não seja todo mundo que vá conseguir reservar 15 minutos do dia para fazer respiração.

Basicamente, é sobre entender que o importante é a gente ser gente e estar com gente.

2023-12-16T20:09:30Z dg43tfdfdgfd