INDúSTRIA FARMACêUTICA NãO ALTERA VALORES DE REFERêNCIA DE EXAMES LABORATORIAIS, DIZEM ESPECIALISTAS

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O que estão compartilhando: que a indústria farmacêutica está diminuindo os níveis da curva de Gauss em exames laboratoriais para que pacientes acreditem que estão saudáveis, sem que estejam. Assim, eles não fazem suplementação e ficam dependentes de medicamentos.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Os valores de referência encontrados em exames laboratoriais são determinados com base em estudos científicos e podem ou não ter como parâmetro a curva de Gauss – um gráfico em formato de sino que descreve fenômenos da natureza.

Especialistas ouvidos pelo Verifica explicam que a indústria farmacêutica não tem poder de interferir nos valores de referência. Também não há interferência dessa indústria nos pontos de corte, que servem como indicativo de que uma pessoa pode ou não ter um determinado problema de saúde.

Os intervalos de referência são definidos em estudos clínicos realizados pela indústria de diagnóstico in vitro, responsável por criar o método de cada exame. Estes parâmetros são revisados internacionalmente de maneira periódica, e de forma independente por sociedades médicas, não pela indústria farmacêutica.

Por nota, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) frisou que os valores dos exames são definidos pelos laboratórios clínicos por meio de evidências científicas e extenso estudo, sem atuação das empresas de medicamentos.

A reportagem tentou contato com a responsável pela publicação nas redes sociais, mas não obteve resposta. No Instagram, ela afirma trabalhar “Estética Integrativa Quântica Humanizada” e publica conteúdos sobre soroterapia. Embora não se apresente como fisioterapeuta, possui registro ativo no Conselho Federal de Fisioterapia, com autorização para atuar no Estado de São Paulo.

Saiba mais: Em um vídeo publicado no Instagram, uma fisioterapeuta diz existir uma “máfia da indústria farmacêutica” que “está mudando os níveis da curva de Gauss”, usados como parâmetros em exames laboratoriais. Segundo ela, a interferência visa a alterar os valores de referência do que é considerado saudável na população a fim de vender mais remédios. Porém, as alegações foram refutadas por especialistas da área.

O que é a curva de Gauss e por que ela é usada em exames laboratoriais?

A curva de Gauss citada no vídeo nada mais é do que a representação gráfica de um conjunto de dados divididos em diferentes níveis. “Ela se aplica a todo e qualquer conjunto que se pretenda mostrar se há uma distribuição ‘normal’ dos dados obtidos na pesquisa”, apontou o farmacêutico-bioquímico Jorge Luiz Joaquim Terrão, sócio e diretor da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC).

A professora Silvia Shimakura, do Departamento de Estatística da Universidade Federal do Paraná (UFPR), membro do Laboratório de Estatística e Geoinformação (LEG/UFPR), cita o exemplo de uma curva de glicemia. “O que a curva faz é pegar os níveis de glicemia de um conjunto de pessoas saudáveis, sem comorbidades, e distribuir em níveis. Você vai ver que varia de uma pessoa para outra. Essa curva de variabilidade biológica, que é natural, pode ser descrita por uma função matemática que foi proposta por um matemático cujo nome era [Carl Friedrich] Gauss”, explicou.

O gráfico de representação destes níveis vai ter um formato de sino, de modo que os valores ‘normais’ estarão dentro da curva. Ou seja, não dá para simplesmente aumentar ou diminuir os níveis da curva por influência da indústria farmacêutica. “Você teria que mudar o padrão da população. O que a gente diz com a curva de Gauss é isso: ela varia de acordo com essa equação da população”, acrescentou Shimakura.

Há outras situações em que a curva é uma boa referência para identificar um comportamento “normal” na população, como a altura, por exemplo. É comum que um número menor da população tenha baixa estatura, enquanto a maior parte das pessoas terá estatura mediana e outra parcela menor será de pessoas muito altas. Assim, o gráfico de altura da população terá um formato de sino, uma característica dos gráficos gaussianos.

No entanto, é um erro considerar que a curva de Gauss é o único parâmetro para a realização de exames. “A curva descreve um fenômeno da natureza. Alguns exames obedecem a essa distribuição, mas a maioria, não”, disse a médica patologista clínica Luisane Vieira, representante da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC-ML) junto a uma força-tarefa da Federação Internacional de Química Clínica (IFCC) sobre intervalos de referência. Exames que medem vitamina D, altura e glicemia são alguns dos que podem obedecer aos parâmetros da curva de Gauss, citou Luisane.

Como os intervalos de referência são definidos?

Ao ler os resultados de um exame de laboratório, o paciente certamente já observou que, junto a cada um dos itens analisados, existe um valor de referência, que considera os níveis esperados para aquele exame em uma pessoa saudável. Em geral, há valores diferentes para homens, mulheres, crianças e adultos, resguardadas as condições específicas para cada gênero.

Esses valores de referência, no caso dos exames que utilizam a curva de Gauss, são aqueles que estão dentro do “sino”, e são determinados em estudos científicos e indicados pela indústria responsável por criar o método do exame, conhecida como indústria de diagnóstico in vitro – e ela é bem diferente da indústria farmacêutica, que não produz métodos de exames, e sim medicamentos.

A patologista clínica Luisane Vieira explica que esses intervalos são definidos a partir de testes feitos em uma população considerada saudável, incluindo homens e mulheres de diferentes idades para que representem o perfil da população de um modo geral. Eles precisam ser saudáveis porque são os resultados dessas pessoas que servirão de parâmetro para os demais.

“Geralmente, os testes pegam pessoas que estão no Exército, doadores de sangue ou então recrutam homens e mulheres saudáveis. É feita uma avaliação médica dessas pessoas, elas respondem um questionário, um médico as examina, e aí aquele exame laboratorial é testado nessa população”, explicou Vieira.

Então, quando um paciente for fazer um exame de glicemia, se ele for uma pessoa saudável, o que se espera é que os resultados dele estejam dentro dos mesmos níveis encontrados na população saudável que testada previamente. Mas, aquele não é um resultado definitivo, e a interpretação depende do médico e de outros fatores, como o uso de alguns medicamentos, o histórico médico e o exame físico do paciente.

“Aquele intervalo é uma referência para o médico, não é uma coisa que tem resultado absoluto, taxativo. E se o médico precisar – isso é uma coisa que acontece pouco e a gente queria que acontecesse mais – ele deve entrar em contato com o laboratório e dizer que encontrou algo diferente”, afirmou Luisane Vieira. Ela acrescentou que cada laboratório usa um método para fazer seus exames, mas é uma função do estabelecimento liberar os exames com os critérios utilizados para a avaliação.

O farmacêutico-bioquímico Jorge Luiz Joaquim Terrão reforça que os valores indicados nos exames podem sofrer variações, e por isso mesmo há bastante tempo não é usada a terminologia “valores normais”, e sim “de referência”. “Pesquisas mostraram que os valores podem variar de acordo com a localização geográfica, diferença de altitude (latitude), hábitos alimentares, clima, etc”, disse. Para ele, o vídeo não tem respaldo científico e pode levar à desinformação da população.

Como e por quem os esses níveis podem ser alterados?

Diferentemente do que afirma a autora do vídeo, não é a indústria farmacêutica que tem a capacidade de alterar valores de referência nos exames, e sim estudos científicos conduzidos de forma independente e periódica por sociedades médicas, nacionais ou internacionais, como a SBPC-ML, a SBAC e a IFCC, já citadas neste texto.

“Nenhum laboratório recebe da indústria farmacêutica indicações para mudar seu valor de referência. A gente só muda o valor de referência no laboratório quando existe um consenso laboratorial e um consenso das sociedades científicas”, explicou o biomédico Edgar Garcez Jr, vice-presidente do Conselho Federal de Biomedicina.

Ele cita como exemplo uma mudança recente feita a partir de um estudo da Sociedade Brasileira de Cardiologia que levou mais de cinco anos e alterou os valores de referência para colesterol, causando impacto no mundo inteiro.

Algumas revisões de método podem ser feitas pelo próprio laboratório, explica Luisane Vieira, da SBPC-ML, mas é inviável que os laboratórios revisem todos os seus métodos, pelo grande volume deles. Elas podem acontecer, por exemplo, quando um médico percebe que os exames vindos daquele estabelecimento vêm indicando uma deficiência de determinado mineral em um grande número de crianças, sem que ele acredite que a deficiência de fato exista. O laboratório, então, pode fazer um estudo a partir dos dados da população e do método utilizado.

“Da parte do laboratório, a gente tem que aprimorar, não exatamente pelo motivo que ela relatou. Mas, porque alguns estudos não foram feitos no Brasil, e o Brasil tem uma genética. Hoje, a gente está em um processo de revisão dos intervalos, mas todo processo de revisão é demorado, é custoso. É uma questão em evolução”, disse Vieira.

Além dos intervalos de referência, os exames também apontam dados usados como limites de decisão médica. Pessoas não-diabéticas possuem uma glicemia em jejum de até 99 mg/dl. Em gestantes, o limite é ainda menor. Mas isso não significa que aqueles que têm resultado acima de 100 são, automaticamente, diabéticos. Esse limite de decisão médica serve para indicar que o paciente corre risco de se tornar diabético.

A professora de estatística Silvia Shimakura destaca que há um debate em curso na comunidade científica sobre a possibilidade de ajustar os valores limites nos exames a fim de alertar os pacientes mais cedo sobre possíveis problemas de saúde: “O que os endocrinologistas debatem é se não seria interessante baixar o ponto de corte para que a pessoa fique atenta antes. Será que 100 mg/dL de glicemia não está sendo tarde demais para aquela pessoa? É mais nesse sentido”, afirmou.

Qual a relação entre a indústria farmacêutica e os laboratórios?

Na postagem analisada, não é feita uma distinção entre atuação dos laboratórios e a indústria farmacêutica. Enquanto os laboratórios são responsáveis por realizar análises clínicas e o processamento dos exames, as empresas farmacêuticas utilizam os resultados dessas pesquisas para verificar a eficácia de seus medicamentos.

“São entidades absolutamente apartadas, se comunicam muito, mas não há interferência da indústria farmacêutica nos valores de referência laboratorial”, explicou o biomédico Garcez.

O especialista destaca que o desenvolvimento de medicamentos é supervisionado por comitês da sociedade civil, pesquisadores e órgãos governamentais, incluindo o Ministério da Saúde. “A pesquisa farmacêutica se baseia em evidências clínicas, exames e consultas médicas. Tudo isso forma um diagnóstico que vai mostrar se o medicamento em si tem um efeito prático para aquilo que se propôs a tratar. Ou seja, ela se apoia no exame laboratorial, e não o contrário”, disse Garcez.

Em nota, o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) informou que “todos os medicamentos disponíveis no Brasil, devidamente registrados e aprovados para consumo pela Anvisa, seguem as indicações terapêuticas estabelecidas em exaustivos estudos de laboratório, pesquisas clínicas, além do acompanhamento permanente a que estão submetidos pelo sistema nacional de farmacovigilância”.

A entidade acrescentou que “as bulas dos medicamentos resumem, para os consumidores e os profissionais da saúde, todas as informações e orientações relevantes relativas às características e à posologia dos produtos”.

Os laboratórios de análises clínicas também seguem as diretrizes da Anvisa, especificamente a Resolução da Diretoria Colegiada nº 786, de 5 de maio de 2023, que estabelece as normas para a realização de exames sem qualquer interferência da indústria farmacêutica.”O documento apoia que os valores de referência sejam estabelecidos pelas próprias clínicas”, afirmou Garcez.

Além disso, para garantir a qualidade, os laboratórios passam por auditorias de controle de qualidade externo realizadas por sociedades científicas, como a SBPC-ML e a SBAC.

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